sexta-feira, 13 de abril de 2012

As Portas do Diabo

Hoje, sexta-feira treze, é um dia excelente para publicar um excerto do Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes (Saída de Emergência, 2012). Intitulado As Portas do Diabo, fala, em principal, sobre a lenda da construção das portas da catedral parisiense de Notre-Dame. Não sejam supersticiosos e atrevam-se a ler.

(Segundo a lenda, o bispo francês Maurice de Sully mandou construir a catedral de Notre-Dame no local onde ficava um templo galo-romano de adoração a Júpiter.)

«Diz a sabedoria popular que as mãos ociosas são o instrumento do Diabo; e é neste chavão que reside a noção, difundida pelas fés de raiz ou têmpera protestante, de que a ociosidade é um pecado. Esta ociosidade, contudo, difere do pecado mortal da preguiça – que não é uma preguiça do corpo, mas do espírito: a falha em realizar os propósitos de Deus. Com efeito, no que concerne à preguiça e à divagação, o cristianismo é relativamente benevolente, de acordo com a ideia da divina providência, que cuida de todas as criaturas sem que estas precisem de laborar. Coteje-se esta concepção com a do Diabo trabalhador, frequente tanto nas fontes populares como nas eruditas, embora seja nas primeiras que os relatos fabulosos de diabos construtores reverberem com maior vigor o espírito do seu tempo.

Não deixa de ser revelador da real diferença de atitudes em relação à ociosidade “malandra” e ao pecadilho canónico da preguiça, mesmo em culturas onde o protestantismo medrou com mais viço, como as do Norte da Europa. Encontramos um excelente exemplo dessa dicotomia numa cândida gravura incluída no livro Historia de Gentibus Septentrionalibus (História das Gentes do Norte), publicada em 1533 por Olaus “Magnus” Mansson. Nesse desenho, três demónios do Inferno parecem genuinamente felizes em ajudar os homens a realizar trabalhos pesados, como extrair minério, varrer o estábulo e tratar dos cavalos e, ainda, remar um barco cheio de passageiros, ao mesmo tempo que, por artes mágicas, se produz um clima agradável à viagem. Extraordinária é, também, a carroça voadora – com passageiros – que é puxada pelos ares por um demónio serpentiforme que faz lembrar os dragões chineses ou, com as devidas distâncias, o dragão Falkor do livro Die Unendliche Geschichte (A História Interminável) do escritor alemão Michael Ende (1979) – centenas de anos antes do advento da aeronáutica, consiste numa representação inesperada. Porém, a mais conspícua representação do Diabo construtor é a de pontifex: fazedor de pontes.

Existem imensas histórias sobre pontes construídas pelo Diabo – em alemão são tão numerosas que cunharam um adjectivo próprio: teufelsbrücke (pontes do Diabo). Na Suíça há uma ao lado da casa em que nasceu Paracelsus; e em França uma ponte fortificada do século XIV, a Pont de Valentré da comuna meridional de Cahors, cujos arcos góticos sustentam cinco belíssimos torreões, é tida como uma das obras-primas do Diabo e para que ninguém se esqueça de quem foi o construtor, pode ver-se, empoleirada numa das esquinas superiores do torreão central, uma escultura de um diabo atrevido, entre o réptil e o primata. Uma das pontes fortificadas mais célebres da literatura fantástica e que me evoca a Pont de Valentré, uma das mais magníficas e bem-conservadas pontes fortificadas, é a formada pelo conjunto de ponte e duas torres chamado The Twins (As Gémeas), integrante na série de fantasia A Song of Ice and Fire (As Crónicas de Gelo e Fogo), do escritor norte-americano George R. R. Martin, e que consiste na casa do untuoso lorde nonagenário Walder Frey.

Um elemento presente na maioria das histórias sobre as pontes construídas pelo Diabo é o do pagamento por ele exigido na forma da primeira alma que passar pela obra recém-erguida e os diversos artifícios que os homens engendram para ludibriá-lo. De modo geral, encontram uma maneira de chamar um animal e fazê-lo atravessar a ponte, como cães ou gatos. Uma lenda popular conta como o santo galês São Cado, na altura bispo, enganou o Diabo, dando-lhe um gato como pagamento pela construção da ponte que liga a Ilha de São Cado à região francesa da Bretanha. Ao já mencionado Jack o’Kent também é imputada uma façanha semelhante, mas com um cão.

Em Portugal existem diversas pontes do Diabo, como a Ponte de Val-Telhas que, segundo as gentes da freguesia de Torre de Dona-Chama, do concelho de Mirandela, foi construída pelo Diabo numa só noite, enquanto cantava alegremente. Outra é a Ponte de Domingos Terne, sobre o Rio Ave, na freguesia de Esperança, do concelho de Póvoa do Lanhoso, feita pelo Diabo para ajudar dois namorados que moravam em margens separadas. Conta a história que o Diabo todas as noites levantava a ponte para o rapaz encontrar-se com a namorada (na gíria local diz-se conversada). O padre da paróquia calhou a ver o sucedido e na noite seguinte, quando o Diabo levantou a ponte, benzeu-a e o mafarrico deixou de ter poder sobre ela, deixando-a onde ficou até hoje. Acrescente-se que o orago de Esperança é São Bartolomeu, o carcereiro do Demo, e na minha opinião é possível que, algures no tempo, a sua figura tenha dado origem à do padre que benzeu a ponte. Tanto a ponte de Val-Telhas como a de Domingues Terne (ou de Mem Guterres) são românicas (não confundir com romanas, já que muitas construções, em principal pontes e estradas, têm sido chamadas de romanas sem sê-lo): a primeira já aparece referenciada em 1258, nas inquirições gerais de D. Afonso III sobre as posses da nobreza e do clero, e a segunda data, provavelmente, dos últimos decénios de 1300. E falando no século XIV, e no Diabo, concluo este texto com a lenda das portas da catedral parisiense de Notre-Dame.

Começada a construir no século XII e concluída em meados do século XIV, Notre-Dame é uma das mais antigas igrejas góticas europeias e uma das primeiras nas quais se ergueram com sucesso os revolucionários arcos botantes: estruturas que contrariam a pressão lateral exercida pelas paredes altas de uma construção de grandes dimensões. O nome catedral relaciona-se com o facto de ser a igreja em que está situada a cadeira do arcebispo (cathedra significa cadeira em latim). Ainda hoje, Notre-Dame é a sede do arcebispado de Paris e guarda três relíquias da Paixão: um dos pregos com que Cristo foi crucificado, um pedaço da cruz e, talvez a mais importante, a proverbial coroa de espinhos; normalmente, são mostradas aos fiéis nas primeiras sextas-feiras de cada mês e todas as sextas-feiras durante a quaresma, às três horas da tarde, e na Sexta-Feira Santa das dez horas da manhã até às cinco horas da tarde. Apesar de tão veneráveis preciosidades, o edifício sempre manteve uma aura endiabrada e uma das suas lendas conta como as portas de ferro forjado que testemunharam a sua inauguração foram, de facto, feitas pelo Diabo.

A fachada Oeste (a principal) de Notre-Dame tem três entradas: a Porta da Virgem, a Porta do Juízo Final e a Porta de Santa Ana, cada uma decorada de modo distinto nos tímpanos, arquivoltas e colunas de pedra, de acordo com a vida da personagem bíblica à qual é dedicada. A lenda conta que um ambicioso ferreiro ou caldeireiro à jorna, desejoso de ser promovido a mestre, ofereceu-se para criar as novíssimas portas de ferro de Notre-Dame (na verdade, são seis portas, porque cada entrada tem duas portas). No entanto, ele depressa descobriu que a tarefa era demasiado difícil para os seus dotes e sentiu-se desesperado; foi nessa hora maldita que apareceu um misterioso artificie chamado Biscornet e lhe propôs ser ele a fazer as portas.

Quando o espantado jornaleiro perguntou como poderia pagar, o estranho respondeu-lhe que podia pagar com a alma: Biscornet era, claro, o Diabo disfarçado. A perspectiva de ser arrebanhado para o Inferno era desconsoladora, mas a emergência da tarefa não deu escolha ao pobre jornaleiro que concordou com o pacto diabólico. Ao chegar à oficina no dia seguinte o jornaleiro descobriu que quatro portas já estavam terminadas: cada uma consistindo num trabalho lindíssimo e impecável, feito numa só peça de ferro forjado, sem remendos ou soldaduras, espalhando-se com finura em formas graciosas; olhando com atenção, descobriu no ferro forjado diversas pequenas figuras cornutas em relevo: eram a marca d’água do mestre infernal.

Embevecido e receoso ao mesmo tempo, o jornaleiro perguntou ao Diabo porque é que não fizera as duas portas para a entrada do meio (a principal), e ele respondeu que era incapaz de fazê-las porque seria por elas que a hóstia e o vinho da eucaristia passariam nas procissões. Desse modo, o jornaleiro salvou-se de ser roubado da alma pelo Diabo, porque este foi incapaz de completar a tarefa, e ainda ficou com quatro magníficas portas, graças às quais foi promovido a mestre. A história, contudo, não diz nada sobre a feitura das remanescentes duas portas.

A versão mais popular da lenda conta que as Portas do Diabo foram substituídas na recuperação total do edifício chefiada pelo subversivo arquitecto francês Eugène Viollet-le-Duc, iniciada em meados do século XIX, e perdeu-se o seu paradeiro. Quem sabe se o próprio Diabo, saudoso de um trabalho bem-feito, não foi buscá-las ao armazém para servirem de portas ao Inferno. Gosto de imaginar os motivos intrincados que ele modelou a ganharem vida com o calor do mundo inferior e a estorcegarem-se como vermes de fogo à aproximação das almas danadas.»